Um dos dias mais malucos da minha vida neste pouco turístico monumento natural dos Estados Unidos
Índice
INTRO
O Grand Staircase-Escalante National Monument (GSENM) pode não ter um nome muito atrativo, mas não por isso ele fica atrás dos outros parques americanos no quesito belezas naturais.
Por ser pouco visitado, as suas atrações estavam muito mais vazias que todos os lugares que visitei no país, para minha mais completa alegria.
A área do parque é gigantesca e como eu teria só dois dias nele, tive que selecionar bem minhas prioridades. Gastei o primeiro dia pra conhecer algumas de suas cachoeiras e o segundo para explorar o Death Hollow Canyon. É preciso realizar uma longa travessia a pé de 3 dias para conhecer bem este cânion, mas como era meu último dia nos EUA, se eu quisesse fazê-la teria que ser em 1 dia. Fique no relato pra saber tudo sobre essa aventura insana.
O GSENM ficou em 2º no meu ranking com os 20 melhores lugares do sudoeste dos EUA. Se quiser dar uma olhada na lista completa, acesse o post 20 Lugares Incríveis do Sudoeste dos EUA. Para mais informações sobre o país, clica no link Guia do Sudoeste dos EUA.
COMO CHEGAR
O parque está localizado no sul do estado do Utah, no sudoeste dos EUA. A vila de Escalante, base para conhecer o parque, fica a 490 km a nordeste de Las Vegas e 450 a sul de Salt Lake City, capital do estado.
Na minha viagem pelos EUA, eu aluguei um carro em Vegas e dirigi menos de 5 horas por excelentes rodovias (como todas do país) até chegar em Escalante. Recomendo que você passe pelos fabulosos parques nacionais Zion e Bryce Canyon, os quais estão no caminho entre Las Vegas e o GSENM.
Eu não encontrei informações de transporte público pra chegar em Escalante, caso você não estiver viajando com um carro alugado. Sei que há serviços de vans para chegar no Zion, através das companhias Greyhound e St George Shuttle, mas depois pra ir até o GSENM talvez a única opção seja através de carona. Pra se ter uma ideia de como esta área é remota, a população de Escalante é de 800 pessoas.
QUANDO IR
A melhor época pra fazer a travessia do Death Hollow é de maio a setembro. Mesmo que as temperaturas sejam bem elevadas no verão do Utah, boa parte desta “trilha” segue por dentro do rio, então pode complicar se estiver um pouco frio. Agosto é um mês delicado, porque há o risco de flash flood, ou inundação súbita, por ser o período no ano com maior intensidade de chuvas.
Como as temperaturas de outono e primavera são mais amenas, os meses de março, abril, outubro e novembro também podem ser boas opções se você não for fazer esta travessia e apenas quiser conhecer outros pontos do parque.
Eu estive na região no final do verão americano, em agosto, justamente no mês com mais risco de enchentes. Fiquei com o brioco na mão, mas felizmente nada de ruim aconteceu. As temperaturas estavam elevadas e o tempo bem seco.
GASTOS
Hospedagem: eu me hospedei em um hotelzinho em Escalante, que custou cerca de 50 dólares a diária;
Ingresso: o parque não possui uma portaria e, portanto, não cobra ingresso;
Alimentação: até para comer eu gastei pouco. Uma simples refeição pode custar mais de 15 dólares nos EUA, mas algo inusitado aconteceu comigo. Na noite do dia anterior à travessia eu estava sem suprimentos e todos os mercados e restaurantes da vilinha de Escalante estavam fechados. Quando estava começando a me desesperar e pensando que sem comida não ia ter como fazer este trekking, notei que o Subway ainda estava aberto (sim, até um povoado de 800 habitantes tem fast food no país). Entrei no estabelecimento e fui na intenção de pedir um caminhão de lanches, quando uma senhora me informou que já não estavam mais atendendo. Comecei a implorar pra que me vendessem qualquer coisinha pois eu tava sem jantar e precisava de comida pro dia seguinte. Foi quando a moça simplesmente me forneceu alguns pães e um pote lotado com almôndegas, de graça! E tinha quantidade suficiente pra acampar uns 2 dias 😊. Pensa num “minino” agradecido;
Transporte: meus gastos foram mais com o transporte mesmo, visto que estava viajando com o carro que aluguei em Las Vegas. O aluguel da versão econômica pode custar de 1.000 a 1.500 dólares por mês, a depender da época da sua viagem. No verão, o valor do seguro do carro é maior, pois no calor as rodas podem estourar com o asfalto quente, apesar do risco ser bem baixo.
O QUE LEVAR
- Mochila de ataque. Eu levei uma de 60L porque não tinha outra, mas ela estava quase vazia. Daria pra ter feito com uma de 20-30L tranquilamente;
- Saco de dormir e isolante. Eu fiz a travessia em 1 dia, mas como a caminhada é muito longa, não custava levar um saco de dormir para bivacar, caso fosse necessário;
- Calçado de trekking. De preferência um calçado leve e não impermeável. Isso porque se caminha com o pé dentro da água por boa parte do trajeto;
- Comida para 2 dias de trilha, para o caso de não conseguir fazer a travessia em 1 dia. Eu levei e isso me trouxe bastante tranquilidade;
- Água. De 1 a 2 litros, se você for tomar a água do rio como eu fiz ou de 4 a 5 litros se não quiser bebê-la;
- GPS ou app de GPS. Ajuda demais na orientação;
- Lanterna. É sempre bom ter.
O GRAND STAIRCASE-ESCALANTE
Eu conheci o Grand Staircase-Escalante National Monument por acaso. Quando passei no Utah para visitar os parques Zion, Bryce Canyon e Canyonlands, só consegui ir aos 2 primeiros, porque o terceiro era um bocado mais distante. Então, como eu ainda teria dois dias no país, resolvi dar um pulo no GSENM, visto que a cidade de Escalante estava a apenas 1 hora do Bryce.
OBS.: recomendo que você assista ao filme 127 Horas, se ainda não o conhece. Ele retrata a história de um aventureiro doido que caiu numa fenda e ficou com o braço preso debaixo de uma pedra por vários dias. A história é real e se passou no Canyonlands National Park.
Como já informado, no primeiro dia eu fiz duas trilhas pra visitar duas cachoeirinhas e no segundo dia no parque eu realizei a super travessia do Death Hollow Canyon. Segue a descrição de minhas aventuras nestes lugares:
Dia 1 – Lower e Upper Calf Creek Falls
O acesso para a trilha da cachoeira Lower Calf Creek Falls fica a 25 km a leste de Escalante, na estrada Interstate 12, que conecta esta cidade com a vila de Boulder. Uma vez no estacionamento, é preciso caminhar 6 km por uma bela trilha com várias feições rochosas peculiares, até chegar a esta queda de quase 40 metros de altura.
Na sequência, eu segui para a área de acesso para a cachoeira Upper Calf Creek Falls, que fica 10 km a norte do estacionamento da primeira. A trilha ida e volta para esta queda de 26 metros de altura possui cerca de 4 km.
Você pode encontrar o tracklog de ambas as trilhas para a Lower e Upper Falls nos seus respectivos links.
Dia 2 – A Travessia do Death Hollow
Agora para o que interessa! `
A Travessia do Death Hollow é normalmente feita em 3 dias de caminhada e o itinerário é feito assim:
- Ida de carro até o início da trilha Boulder Mail Trail;
- Trekking de 12 km até o topo do Death Hollow Canyon;
- Descida até a base do cânion e caminhada de 15 km pelo rio até o Escalante Canyon;
- Mais 12 km andados por dentro deste cânion até chegar na cidade de Escalante;
- Dá teus pulos pra voltar até o carro 😊.
Abaixo você pode ver o trajeto caminhado (em vermelho) e alguns pontos de interesse (em amarelo):
O tracklog que gravei no GPS pode ser encontrado neste link do Wikiloc.
Parte 1 – Boulder Mail Trail até o Death Hollow
Acordei às 5h30 no meu hotelzinho em Escalante, tomei um café da manhã simples e dirigi por 40 minutos até a Boulder Mail Trailhead.
Por ser conhecida por uma travessia de 3 dias, eu estava com medo de não dar conta de fazê-la em apenas 1 dia. Então, estipulei que eu seguiria adiante somente se eu chegasse no cânion Death Hollow até às 10h. Do contrário, eu andaria de volta ao carro.
Comecei o trekking às 7h, na mesma hora que o sol nascia no horizonte.
A trilha tem início na cota 2.070 m e segue relativamente plana por 4 km até chegar no Sand Canyon. Na sequência, caminha-se mais 4 km para atravessar este cânion, o qual possui cerca de 150 metros de profundidade. Depois, o terreno aplaina novamente até atingir o mirante para o Death Hollow Canyon.
Esses primeiros 12 km são os mais difíceis no quesito orientação. Isto porque não existe uma trilha demarcada para seguir na maior parte do tempo. Neste trecho, caminha-se sobre uma rocha arenítica branca, conhecida como slickrock. Para se localizar, é preciso seguir os totens de pedras empilhadas, como você pode ver a seguir:
Parte 2 – Do Death Hollow Canyon ao Escalante Canyon
Eram 9h30 quando alcancei o mirante para o Death Hollow, então como cheguei antes do previsto segui adiante na empreitada 😊.
Levei cerca de 40 minutos pra descer até a sua base, que está na cota 1.780 m. Adorei contemplar a lindeza do cânion de todos os ângulos enquanto ia descendo a pé.
Quando cheguei lá embaixo havia um grupo de cerca de 10 pessoas, para minha imensa surpresa. Conheci 3 moças que me contaram que estavam ali fazendo um curso de sobrevivência. Elas levaram apenas um lençol e uma escova de dentes pra passar 2 semanas dentro do cânion e só o que elas estavam encontrando pra comer eram ratos e lagartos. Foi bom saber que eu não era o único ousado por ali e que esta travessia de fato não atrai muitos visitantes, afinal, imagino que as pessoas não façam curso de sobrevivência em lugares que passam muitos turistas.
A conversa tava tão boa que passei meia hora falando com elas. Se eu tivesse um dia extra, eu ficava ali vivendo um pouco desta experiência, mas tive que manter o foco e seguir adiante, pois ainda havia dezenas de quilômetros a serem caminhados e meu vôo de volta para São Paulo era em 2 dias.
Uma vez no fundo do cânion, a orientação se torna mais fácil, porque eu sabia que deveria seguir pelo rio até chegar no Escalante Canyon.
Apesar disso, esta é a parte mais complicada de toda a travessia, pois é preciso andar 15 km pisando na areia dentro de um riozinho estreito. Existem alguns pequenos trechos de trilha, mas 90% do tempo no interior do cânion Death Hollow é de caminhada com os pés na água.
E olha, foi um teste mental, viu. Chegou um momento em que eu já tava de saco cheio de andar sobre aquela areia super fofa do rio, visto que em algumas partes você afunda o pé dentro dela, às vezes até o joelho. Era um tira e põe de tênis a cada 10 minutos pra tirar areia, que uma hora eu desisti e segui no desconforto mesmo. Além disso, em muitos momentos a água do rio batia na cintura e em alguns trechos até na altura do pescoço (e olha que tenho 1,90 m de altura).
Apesar das dificuldades, eu estava completamente maravilhado com o lugar a cada passo que eu dava. Foi um êxtase sem tamanho ter aquele cânion só pra mim, mas recomendo que você faça esta trilha com uma companhia, pois se algo acontecer é importante ter alguém pra socorrer. Eu até avisei no meu hotel que ia fazer esta travessia, mas ela é tão longa que ia ser bem difícil me encontrarem rapidamente.
Após 10 km no interior do Death Hollow, o cânion dá uma super estreitada, tanto que tem uma parte em que é possível tocar em ambas as suas paredes ao mesmo tempo.
Neste local, o rio corre sobre lajes de pedra e forma lindos pocinhos. Foi um dos pontos mais fantásticos de toda a travessia!
Eu estava ensandecido de alegria, mas a partir daqui o perrengue começou a dar as caras.
Primeiramente, eu me molhei 100%, porque em um desses poços não dava pé e caí inteiro na água. A sorte é que estava filmando e consegui esticar o braço pra salvar a câmera, mas até minha mochila molhou. Dá uma olhada no vídeo abaixo. A qualidade da filmagem tá bem ruim e está sem edição, mas dá pra ter uma noção da beleza do Death Hollow.
Segundo, que a bateria da minha câmera acabou minutos depois que gravei o vídeo acima e, portanto, deixei de capturar alguns momentos insanos da natureza do lugar. Apesar que confesso que foi até bom, já que eu ainda tinha um tantão de distância pra percorrer e ficava distraído tirando dezenas de fotos a todo o tempo.
Parte 3 – Do Escalante Canyon à Vila de Escalante
Quando alcancei o cânion Escalante (e já estava achando que não ia chegar nunca), minhas forças já estavam bem diminuídas. Eu tinha feito um mês intenso de trekkings pelos EUA e já tinha percorrido 27 km nesta travessia.
O encontro entre os cânions Death Hollow e Escalante é um verdadeiro espetáculo de beleza, só que infelizmente não tenho foto.
Nesta hora eu encontrei duas pessoas que estavam cortando algumas árvores. Isto me trouxe um pouco de tranquilidade, pois saberia que alguém poderia me socorrer caso eu não desse conta (apesar que fiquei bem incomodado por estarem cortando a vegetação do parque).
Pra sacramentar o perrengue, acabou a bateria do meu GPS. Além de estar sem orientação, eu agora tinha acabado de ficar sem o meu relógio. O sol se põe bem tarde nesta época do ano, mas já havia passado das 17h, o que me deixou um pouco preocupado.
O Escalante Canyon é bem mais tranquilo de se caminhar, visto que aqui não é preciso andar dentro da água, mas não por isso as coisas ficam fáceis. A trilha é toda sobre areia bem fofa, daquelas que pra cada passo que se dá parece que se volta meio.
Nos últimos 7 km eu estava completamente esgotado. Caminhava olhando para o chão apenas torcendo pra chegar logo na vila de Escalante antes do anoitecer. As dores nas pernas estavam extremas. Foi dureza.
Felizmente, deu tudo certo e consegui chegar na cidadezinha às 20h30. Nesse momento o sol já tinha se posto e não havia muita luz no céu.
Faltava só uma parte importante pra concluir a jornada: regressar ao carro. Ainda havia 40 km de estrada que me separavam do meu querido Dodge Avenger.
Caminhei então até a rodovia Interstate 12 e comecei a pedir carona. A noite começou a cair e após 20 minutos pedindo, pensei que o melhor seria dormir ali na vila e dar um jeito de buscar meu carro no dia seguinte. Até que, finalmente, uma moça numa caminhonetona parou pra mim. Pensa num alívio.
Mas nem tudo estava terminado. Ela me deixou na rodovia, no acesso para a trilha Boulder Mail Trail. Então, eu ainda tive que caminhar quase 1 km todo quebrado e no escuro. Lembro que estes singelos 900 metros foram intermináveis.
Até que, após 14 horas de tê-lo estacionado, voltei pro meu carrinho. Caraca, que alegria! Nunca vou esquecer desse momento.
Dirigi os 40 km pra voltar pra Escalante e dormi de novo no mesmo hotel. Acordei na manhã seguinte pra percorrer os 490 km de carro até Las Vegas e ainda consegui curtir uma baladinha antes de tomar o vôo para São Paulo no outro dia.
Que saga!
PRA FECHAR
O lema deste post é faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Andar 40 km de trilhas em um dia é uma tarefa extremamente desgastante. Sugiro fortemente que você traga a sua barraca e passe ao menos uma noite no interior do Death Hollow. Tem uma área boa pra armar barraca assim que se chega na base do cânion, vindo da trilha Boulder Mail (onde encontrei o grupo de survivors).
Uma ideia é fazer a Boulder Mail Trail completa. Ela inicia no mesmo lugar que eu comecei e atravessa o Death Hollow Canyon direto até a vila de Escalante, sem precisar se aventurar no meio dos cânions. Deste modo, você vai caminhar 25 km, como mostra este link do All Trails.
Se você vier para o Grand Staircase-Escalante com tempo, recomendo que visite outras áreas do parque como o Zebra Slot Canyon, o Coyote Gulch e o Devils Garden. São lugares que não fui, mas parecem fenomenais.
O GSENM foi um dos achados mais inesperados da minha vida. Não deixe de visitar a natureza do sudoeste americano. É simplesmente surreal.
Valeu pela leitura!
Forte abraço!